Se, na década de 1980, a força da cirurgia plástica estava concentrada nos procedimentos estéticos e pouco nos reparadores, dados mais recentes da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP) têm apontado para o crescimento das cirurgias reparadoras e, em especial, de reconstruções mamárias. Em 2009, o censo realizado pela SBCP apontava que, dos 27% dos procedimentos reparadores realizados, só 3% eram cirurgias de reconstrução mamária. Mas, no Censo 2016, o número de reparadoras saltou de 27% para 43%, quando foram feitas 62.681 cirurgias de reconstrução das mamas, quase 10% do total das reparadoras realizadas. “O aprimoramento das técnicas e a melhor capacitação de profissionais, associados à ampliação do mercado pela obrigatoriedade de contemplação dos procedimentos reparadores por meio das operadoras de saúde suplementar, são possivelmente os principais fatores que estimulam esse crescimento”, afirma a chefe do Serviço de Cirurgia Plástica do Hospital Pérola Byington – Centro de Referência da Saúde da Mulher, em São Paulo, Ana Claudia Burattini. O Hospital realiza, em média, 100 cirurgias reparadoras por mês.
Tal cenário, no entanto, tem contribuído ou não para despertar o interesse dos cirurgiões plásticos em formação a se capacitarem em cirurgias de reconstrução das mamas? Para responder a essa pergunta, a Plastiko’s ouviu cirurgiões dos principais centros formadores do País para compreender como essa e outras questões, como remuneração e mercado de trabalho, têm interferido na hora de o profissional escolher sua área de atuação.
A percepção da cirurgia plástica é de que o interesse vem aumentando. “Temos percebido um aumento na procura pelo estágio de pós-graduação [em nosso hospital] nesses últimos anos, um reflexo da percepção de que o profissional com essa capacitação tem um papel diferenciado na especialidade”, diz Ana Claudia. No Hospital Pérola Byington, são oferecidas 15 vagas para esse estágio em reconstrução mamária, reservado a profissionais com título pela SBCP. Pelo aumento do número de casos de câncer de mama, o coordenador do Setor de Reconstrução Mamária da Escola Paulista de Medicina (EPM), Miguel Sabino Neto, salienta que há uma demanda reprimida de pacientes que fizeram tratamento oncológico e não foram submetidos à reconstrução mamária. “Faltam cirurgiões plásticos para atender a essa demanda na área”, aponta.
Esse interesse pela reconstrução das mamas, avalia o cirurgião plástico Alexandre Mendonça Munhoz, chefe do Serviço de Reconstrução da Mama do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp), existe e, entre as diferentes áreas da reconstrução, a das mamas é a mais concorrida. “Mas, comparando com as cirurgias estéticas e os procedimentos não invasivos, realmente a procura é menor”, pondera Munhoz. O Icesp realiza cerca de 50 reconstruções mamárias por mês e, desde 2015, oferece fellow em reconstrução mamária, com duração de 12 meses.
Na opinião do cirurgião plástico que chefiou a Seção de Cirurgia Plástica e Microcirurgia Reconstrutiva do Instituto Nacional de Câncer (Inca) por 15 anos, Paulo Roberto de Albuquerque Leal, as reconstruções mamárias, assim como a cirurgia reconstrutora em geral, não despertam grande interesse entre os médicos em formação. Ele atribui essa situação, sobretudo, à falta de serviços de formação com docentes treinados em realizar e ensinar esses procedimentos. “O desafio maior é o treinamento para a capacitação. A maioria dos serviços, mesmo os universitários, mantém uma agenda mais voltada para o adestramento em procedimentos estéticos. Como não é oferecido um bom treinamento nas cirurgias reparadoras [para os cirurgiões plásticos em formação], o interesse sem dúvida cai”, aponta.
Outro fator é a necessidade de o cirurgião se submeter a um treinamento rigoroso quando se trata da reconstrução mamária, área com várias técnicas complexas em situações de indicações diversas. Na visão do diretor técnico-científico do Instituto Brasileiro de Controle do Câncer (IBCC), João Carlos Guedes Sampaio Góes, isso pode afastar o jovem cirurgião plástico que deseja uma formação mais imediata com retornos igualmente rápidos. “A reconstrução mamária é uma área um tanto específica dentro da cirurgia plástica. Não é somente assistir a algumas aulas ou ver meia dúzia de casos para o cirurgião estar completo com sua formação”, analisa o diretor da entidade, que realiza aproximadamente 40 cirurgias mensais de reconstrução mamária.
HÁ BAIXA REMUNERAÇÃO PARA RECONSTRUÇÃO DAS MAMAS?
Nesse aspecto, Alexandre Munhoz, do Icesp, ressalta que, além de apresentar poucas flutuações decorrentes de crises econômicas, a cirurgia reparadora das mamas é um movimento cirúrgico mais homogêneo durante todo o ano, diferentemente das cirurgias estéticas mais suscetíveis à diminuição no número de procedimentos em decorrência de crises econômicas ou mesmo durante meses de menor procura. “Mas, muito mais do que a remuneração financeira, aspectos relacionados à satisfação pessoal, como o bom trabalho e o bem maior que isso representa, conferem à reconstrução mamária uma área gratificante de atuação do cirurgião plástico.”
João Carlos Guedes Sampaio Góes, do IBCC, entende que a remuneração é muito baixa principalmente no Sistema Único de Saúde (SUS), mas também nos convênios que, segundo ele, possuem tabelas muito baixas para a reconstrução mamária. “Esse é um aspecto importante que deveria ser cobrado do SUS e dos próprios convênios para procurar atualizar essas tabelas onde há uma discrepância muito grande entre a complexidade e a responsabilidade do tratamento com as remunerações existentes”, avalia.
Ainda que a remuneração seja baixa, analisa Ana Claudia Burattini, do Pérola Byington, a realização de cirurgias reparadoras pode ser uma oportunidade para os que ingressam na carreira se tornarem conhecidos no mercado pela formação diferenciada. “Devido à falta de profissionais de formação adequada no mercado e à demanda crescente, o cirurgião que atua nessa área acaba se tornando referência entre os demais colegas de outras especialidades”, avalia.
CENTROS DE FORMAÇÃO POTENCIALIZAM ESPECIALIZAÇÃO
Com o objetivo de reforçar e ampliar a cirurgia de reconstrução mamária em todo o Brasil, a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica tem atuado em duas frentes: a primeira é o apoio aos centros formadores da técnica em todas as regiões do País, aliado a mutirões para a realização de cirurgias com o intuito de atender um número significativo de mulheres mastectomizadas.
Anualmente, a SBCP organiza, em outubro, mutirões de reconstrução mamária para atender pacientes vítimas de câncer de mama do SUS que aguardam na fila pela cirurgia.
No ano passado, a iniciativa atendeu 1.135 mulheres operadas em todo o Brasil. A entidade também fez a distribuição de 500 próteses na ação. “Realizar, no período de um mês, mais de mil cirurgias de reconstrução de mama no Brasil é muito expressivo. É uma atitude que trouxe um retorno muito bonito em termos de atendimento social”, explica a cirurgiã plástica e secretária adjunta da SBCP, Marcela Cammarota, responsável por coordenar a ação. O mutirão deste ano aconteceu em todo o Brasil na última semana de outubro.
Na linha de frente do Serviço de Cirurgia Plástica do Hospital Daher, no Distrito Federal, Marcela chama a atenção para a importância de motivar cirurgiões plásticos, que estão concluindo a residência, a se qualificarem para atender a esse perfil de pacientes, uma vez que, com a alta incidência de câncer de mama, a tendência é de ampliação da demanda por esse tipo de procedimento. “Nos cursos de gerenciamento de carreira, se fala bastante da superlotação do mercado na cirurgia plástica estética, como a mamoplastia, abdominoplastia e colocação de próteses. É difícil competir sabendo fazer só isso. Para ter um diferencial no mercado, é preciso fazer algo mais, seja reconstrução de mama, seja cirurgia de mão ou craniomaxilofacial. São áreas lindas em que há pouca gente trabalhando e uma demanda enorme”, diz.
A constatação de superlotação no mercado das cirurgias plásticas comuns já tem contribuído com uma mudança de cenário em Brasília. Segundo Marcela, o número de cirurgiões aptos a atender mulheres mastectomizadas ampliou 10 vezes nos últimos anos. “Há pouco tempo, tínhamos apenas dois ou três cirurgiões plásticos que atuavam aqui com reconstrução, agora eu tenho pelo menos 10 ex-alunos que tiveram sua formação com a gente e estão operando muito bem”, destaca a cirurgiã plástica. Em números absolutos, a especialista aponta que, dos 180 cirurgiões plásticos do Distrito Federal, 20 a 30 especialistas são capacitados para realizar cirurgia reparadora das mamas.
Em Curitiba, a chefe do Serviço de Reparação de Mama do Hospital Erasto Gaertner, Anne Groth, aponta que o alto investimento em tecnologia de ponta e a exposição dos alunos a casos clínicos complexos são os principais atrativos para especializar anualmente dois fellowships que concluíram a residência médica em cirurgia plástica. “Aqui no serviço, há uma estrutura completa para que os nossos fellows assumam o protagonismo da cirurgia plástica reparadora. Nós temos microscópio, robô e um centro acadêmico bastante forte”, conta.
Ao todo, o Hospital realiza entre 60 e 70 cirurgias de reconstrução mamária por mês, frequência que confere aos fellowships experiência e prática aguçada na realização do procedimento. “Não existe só o implante, mas também a microcirurgia, o músculo grande dorsal para a reconstrução de mama, e cada situação tem seu momento para você aplicar a indicação correta. O cirurgião plástico geral não sabe fazer essas indicações. Na formação de cirurgia reconstrutora, os residentes e estagiários do nosso serviço são treinados com essas técnicas”, afirma o também cirurgião plástico do Serviço de Cirurgia Plástica e Restauradora do Hospital, Alfredo Benjamin Duarte da Silva.
Na Paraíba, o chefe do Serviço de Cirurgia Plástica do Hospital Napoleão Laureano, que atende de 60% a 70% dos casos de câncer de mama no estado, Péricles Vitório Serafim Filho, destaca que, como forma de fortalecer o procedimento entre os especialistas da cirurgia plástica de todo o Nordeste, realiza o mutirão Dia da Boa Vontade, em março, em comemoração ao Dia Internacional da Mulher. Na ocasião, cerca de 20 pacientes são atendidas por especialistas de todos os lugares do Brasil, que viajam à Paraíba para participar do Simpósio Rec-Mama. “No dia anterior às cirurgias, discutimos os casos que serão operados, trocamos ideias com os profissionais e, no dia do mutirão, os alunos podem acompanhar a cirurgia ao lado de especialistas na área”, destaca Serafim, que coordena a Comissão de Lipoaspiração da SBCP.
Segundo os especialistas, iniciativas assim têm contribuído para devolver à especialidade o direito de ser a única apta a realizar a operação reparadora de mama. Ano após ano, a especialidade assistiu ao crescente desinteresse dos profissionais recém-graduados pela área e, com isso, a demanda ser absorvida por outras áreas. “O mastologista ocupou por ineficiência do serviço público, que não tem cirurgião plástico para atender à demanda. Ele, pela necessidade de atender a paciente, acaba fazendo reconstrução”, declara Marcela Cammarota. O cenário, no entanto, levou alguns mastologistas migrar para a cirurgia plástica estética e, com isso, se tornarem concorrentes diretos dos profissionais de cirurgia plástica. “A formação é incomparável. O cirurgião tem dois anos de cirurgia geral e mais três de cirurgia plástica. Não tem como comparar com um médico que teve sua formação em ginecologia”, conclui Marcela.
Fonte: SBPC Blog